Há corações que carregam profundezas inimagináveis. Como o oceano, são vastos, silenciosos, cheios de segredos. O coração de uma criança abusada não se fecha apenas por medo, mas por uma tentativa desesperada de sobrevivência. Ele se torna azul. Não da calmaria do céu, mas da tristeza do fundo do mar — um lugar onde gritos não ecoam, e onde o tempo se confunde com o trauma.
Em muitos casos, a violência sexual infantil não é um episódio isolado. É uma estrutura de silêncio sustentada por redes de poder, omissão e conivência. Profissionais que deveriam proteger, acolher, orientar — comunicadores, professores, líderes religiosos, terapeutas, juristas — muitas vezes se tornam cúmplices do abuso, seja por ação direta, seja por omissão. A violência não termina no ato: ela se perpetua quando o sistema silencia, desacredita ou descarta a vítima.
É comum que os sobreviventes levem anos, ou mesmo décadas, para romper o pacto do silêncio. Não porque não queiram falar — mas porque sabem o que vem depois: o julgamento, a desconfiança, a destruição dos laços afetivos, e, por vezes, a negação de sua própria dor. Não é raro que a revelação de um abuso revele outros, passados, enterrados na memória familiar. A dor de um pode expor o trauma de gerações.
É nesse cenário que muitas vítimas não apenas sofrem o abuso, mas também o luto pelo abandono social. São silenciadas dentro de casa, dentro das instituições e, principalmente, dentro de si. Quando gritam, não encontram eco. Quando denunciam, encontram portas fechadas.
Mas é possível quebrar o ciclo.
É preciso compreender que não existe tempo certo para denunciar, mas sim o tempo possível de cada um. Que cada vítima carrega a coragem de mil batalhas. Que reconhecer, acolher e ouvir é mais importante do que duvidar, corrigir ou desconfiar. Que o silêncio de quem sabe e nada faz também é violência.