O Brasil é, desde a Proclamação da República em 1889, um Estado laico. Em teoria, isso significa que o país não adota nenhuma religião oficial e deve tratar todas as crenças — ou a ausência delas — com igualdade. No entanto, o calendário nacional diz outra coisa. Datas como Corpus Christi, Nossa Senhora Aparecida e Sexta-feira Santa são feriados amplamente respeitados. Já datas importantes para outras religiões, como o Ramadan muçulmano, o Yom Kipur judaico ou festas de matriz africana, sequer são mencionadas no calendário civil.
“É uma contradição explícita. A laicidade existe na Constituição, mas na prática há uma preferência cultural, política e jurídica pela tradição católica”, explica o professor de direito constitucional Paulo Vieira. Para ele, a predominância do catolicismo histórico no país influencia decisões públicas até hoje. “Não se trata apenas de cultura, mas de um favorecimento institucionalizado.”
O artigo 19 da Constituição Federal veda ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. No entanto, o próprio preâmbulo da Carta de 1988 menciona “sob a proteção de Deus” — já abrindo margem para críticas sobre a neutralidade do Estado.
Em um país cada vez mais plural — com o crescimento de evangélicos, religiões afro-brasileiras, judeus, muçulmanos, budistas, ateus e agnósticos —, manter apenas os feriados católicos como oficiais reforça um modelo excludente. “A festa de Iemanjá, por exemplo, é mais representativa em cidades como Salvador do que o Dia de Finados, mas não é reconhecida nacionalmente. Isso revela o filtro religioso das leis”, aponta a antropóloga Mariana Santos.
Cidades como São Paulo já avançaram na discussão. Lá, o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) é feriado, mesmo sendo um marco laico. Já o Rio de Janeiro reconhece o Dia de São Jorge, padroeiro popular da cidade, mas cuja origem também está ligada ao sincretismo com religiões afro-brasileiras.
Ainda assim, qualquer tentativa de alterar o calendário gera resistência. "Há um apego cultural e político muito forte ao catolicismo", diz Mariana. “Mas a laicidade plena exige coragem institucional para rever privilégios históricos.”
Enquanto isso, o Brasil segue celebrando datas religiosas de apenas uma parte de sua população, mantendo a laicidade como uma ideia bonita no papel — mas frágil na prática.