A versão mais conhecida antes da adaptação da Disney vem dos Irmãos Grimm, que coletaram histórias do folclore europeu no século XIX. Nessa narrativa, não existe fada madrinha, e sim um pé de árvore plantado no túmulo da mãe da menina, onde ela chora e reza até ser ajudada por pássaros que lhe trazem vestes encantadas. Já é possível perceber o tom fúnebre e espiritual do enredo.
Mas o que realmente choca está no desfecho brutal do conto. Para caber no sapatinho de cristal, as irmãs postiças da protagonista mutilam seus próprios pés: uma corta os dedos, outra o calcanhar. Ambas são desmascaradas quando o príncipe percebe o sangue escorrendo do sapato. No final, os pássaros que ajudaram Cinderela bicam os olhos das irmãs, deixando-as cegas como punição por sua crueldade e falsidade.
O tom violento da história refletia a realidade das sociedades europeias antigas, onde contos serviam como advertência — e não como entretenimento leve. As versões mais antigas ainda, como a de Charles Perrault (1697), suavizam um pouco os detalhes, mas mantêm a mensagem clara: virtude e paciência recompensam, mas a inveja e a maldade são castigadas severamente.
Antes mesmo dos Grimm e de Perrault, versões da história já existiam em diversas partes do mundo. Na China, Egito e até no mundo árabe, há contos de uma jovem órfã maltratada que conquista a realeza. Algumas versões envolvem feitiçaria, madrastas assassinas e calçados mágicos feitos de pele ou osso. Em muitas delas, a beleza da protagonista é vista como um dom divino — e por isso, ela se torna alvo de crueldade e perseguição.
Quando a Disney lançou sua adaptação em 1950, o mundo vivia o pós-guerra e ansiava por esperança. O estúdio norte-americano suavizou a história, eliminou os elementos violentos e focou no romance, na bondade e na recompensa moral. A figura da fada madrinha foi incluída como um símbolo de intervenção mágica e divina, transformando o conto em um símbolo da meritocracia emocional.
Mas ao fazer isso, a Disney também apagou a dor, a desigualdade e os aspectos mais sombrios da fábula — aspectos que, embora chocantes, são parte essencial de sua origem e de sua função histórica como alerta moral.
A história real de Cinderela revela que, por trás de muitas narrativas infantis, existe uma camada profunda de sofrimento humano, violência e crítica social. Hoje, revisitá-las é um exercício importante de resgate cultural, mas também de consciência: nem todo final feliz vem sem dor — e nem todo príncipe é o herói.