Quando a animação "Mulan" (1998) estreou nos cinemas, ela foi celebrada por sua narrativa de empoderamento feminino e coragem diante das normas sociais. No entanto, mais de duas décadas depois, o filme da Disney continua provocando discussões — agora, com um olhar voltado para questões de gênero e identidade sexual. Uma das mais intrigantes se refere à relação entre Mulan (disfarçada de homem sob o nome "Ping") e seu comandante, o capitão Li Shang.
Ao longo do filme, Li Shang desenvolve um vínculo de respeito, cuidado e admiração por Ping, sem saber que se trata de uma mulher. Essa conexão emocional, marcada por olhares prolongados, proteção intensa e uma afeição crescente, tem sido interpretada por muitos como uma possível tensão homoafetiva, mesmo que sutil.
Embora a Disney nunca tenha assumido essa leitura, diversos críticos e fãs apontam que há traços claros de atração e afeto entre dois personagens que, naquele momento, se apresentam como homens. Para alguns, isso torna Li Shang um dos raros exemplos — ainda que involuntários — de um personagem bissexual ou queer dentro do universo Disney.
"É claro que a Disney não quis fazer disso uma narrativa LGBTQIA+, especialmente nos anos 90", diz Mariana Lopes, pesquisadora de cinema e gênero. "Mas não dá pra ignorar que há ali um espaço para a interpretação queer, justamente porque Li Shang se afeiçoa a Ping antes de saber quem ela é. Isso mexe com noções de identidade, atração e autenticidade."
Com o remake live-action lançado em 2020, a Disney optou por remover o personagem de Li Shang, substituindo-o por dois personagens distintos: um comandante mais velho e um colega soldado, sugerido como par romântico de Mulan. Segundo declarações oficiais, a mudança se deu para evitar a "dinâmica de poder" entre superior e subordinado. Mas para muitos fãs, isso foi uma forma de censura preventiva, apagando qualquer chance de interpretação queer.
“A versão original permitia uma leitura progressista e interessante sobre atração e identidade”, afirma o crítico cultural Felipe Leal. “Ao dividir Li Shang, a Disney diluiu essa complexidade e nos deu personagens mais seguros, mas menos interessantes.”
A discussão em torno de Mulan e Li Shang toca em um ponto fundamental: a representatividade queer nas produções infantis. Em tempos de maior abertura para discussões de gênero e sexualidade, obras que permitam múltiplas interpretações ganham ainda mais valor.
Mesmo que não intencional, a relação entre Ping e Li Shang representa um momento raro em que a atração transgride a binariedade de gênero tradicional, ainda que sem ser nomeada. E isso, por si só, é um gesto poderoso — principalmente em um estúdio historicamente conservador como a Disney.
"Mulan" segue sendo uma das produções mais significativas da Disney. Mas sua relevância não se limita à luta de uma jovem contra as amarras patriarcais. Ela também desafia — ainda que indiretamente — as normas da heterossexualidade compulsória e da identidade de gênero fixa. E isso, talvez, seja um de seus legados mais revolucionários.