Raya e o Último Dragão (2021), produção da Disney ambientada no universo mágico e culturalmente inspirado do sudeste asiático, foi celebrada por sua qualidade visual, protagonismo feminino e diversidade. Mas além da estética e do enredo de fantasia, outro elemento chamou atenção — especialmente do público LGBTQIA+: a relação tensa, intensa e ambígua entre Raya e sua rival, Namaari.
Ao longo do filme, a dinâmica entre as duas é carregada de emoção: troca de olhares prolongados, mágoas profundas, ressentimentos com fundo afetivo e, por fim, reconciliação dramática. Para muitos fãs, essa narrativa ultrapassa os limites do conflito entre inimigas — e toca em uma intimidade que sugere atração, ou até amor não correspondido.
Embora nenhuma menção direta à sexualidade das personagens seja feita, a química entre Raya e Namaari gerou uma onda de interpretações e fanarts queer nas redes sociais. E a validação não veio apenas do público: a roteirista Adele Lim afirmou em entrevistas que as leituras queer da relação são “absolutamente válidas”, mesmo que não tenha sido explicitamente escrita dessa forma.
Esse tipo de afirmação, embora bem-intencionada, levanta uma questão crítica: até que ponto a Disney está disposta a abraçar a representatividade queer de forma direta e textual — e não apenas simbólica ou sugerida?
A escolha por manter a tensão entre Raya e Namaari no nível da ambiguidade permite uma gama de interpretações — e esse é justamente o problema. Para um estúdio com o alcance da Disney, cuja influência molda gerações de infâncias e imaginários, a constante recusa em mostrar personagens queer de forma clara e afirmada soa menos como liberdade criativa e mais como receio comercial.
A representatividade queer tem sido, na maioria das vezes, tratada pela Disney como um sussurro: LeFou dançando por dois segundos, Elsa sem par romântico, e agora, Raya e Namaari com uma "rivalidade íntima" que muitos veem como um romance mal resolvido — mas que nunca é nomeado como tal.
“A gente se cansa de ler entrelinhas”, diz a ativista e educadora Mariana Silva. “Queremos personagens queer que existam, que se declarem, que amem abertamente. Não mais só códigos visuais e interpretações subjetivas.”
A diferença entre representatividade simbólica e textual é crucial. Mostrar afeto entre duas mulheres e deixar no ar que "poderia ser mais" pode até parecer um avanço frente ao histórico conservador da Disney. Mas na prática, é um recurso seguro para agradar públicos progressistas sem confrontar abertamente os mercados mais conservadores.
No caso de Raya, essa ambiguidade pode ser lida como estratégica: manter a trama universal e sem “polêmicas” garante aceitação global, especialmente em países onde conteúdos LGBTQIA+ ainda são censurados. Mas isso tem um custo: o apagamento constante da vivência queer como algo legítimo, presente e narrativamente relevante.
Raya e Namaari têm química, conflito e reconciliação — tudo que compõe uma boa história de amor. Mas na Disney, o amor queer ainda precisa vestir a armadura do subtexto. Enquanto a empresa continuar apostando na neutralidade estética em vez de uma representatividade clara e corajosa, continuará também alimentando o debate: é realmente inclusão ou só mais uma forma elegante de evitar se posicionar?
No fim, o dragão pode até voar alto. Mas a verdadeira ousadia seria permitir que duas heroínas se amassem — e que isso fosse dito em voz alta.