Em Cruella (2021), um dos personagens mais marcantes não é um vilão, nem uma heroína — é Artie, o dono de um brechó ousado e estiloso, interpretado por John McCrea. Com roupas extravagantes, maquiagem marcante, uma atitude confiante e desafiadora, Artie surge como um personagem que imediatamente evoca o universo queer, drag e não-binário. Mas há um detalhe que salta aos olhos de críticos e ativistas: o filme nunca nomeia Artie como tal.
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Artie é, ao que tudo indica, o primeiro personagem da Disney com uma expressão de gênero abertamente andrógina em um papel significativo. No entanto, a produção evita qualquer menção direta à sua identidade de gênero ou orientação sexual. Em tempos em que o debate sobre visibilidade LGBTQIA+ está em alta, a escolha da Disney por manter Artie no campo da ambiguidade levanta questionamentos importantes sobre o real compromisso da empresa com a diversidade.
Com forte influência da estética glam rock dos anos 70 — em especial de artistas como David Bowie e Prince —, Artie é visualmente transgressor. Sua presença no filme quebra com padrões tradicionais de masculinidade e dialoga diretamente com culturas queer urbanas e com o movimento drag, mesmo que isso nunca seja mencionado no roteiro.
Essa ausência de textualização não passou despercebida. “Ele é queer em todos os aspectos visuais, mas o filme evita dizer isso em voz alta. É como se a Disney dissesse: ‘você pode ver, mas não pode confirmar’”, afirma Júlia Nascimento, pesquisadora de gênero e mídia.
A presença de personagens LGBTQIA+ nas grandes produções hollywoodianas tem crescido — mas muitas dessas representações ainda ocorrem dentro de uma estratégia conhecida como "inclusão palatável": personagens são projetados para sugerir diversidade sem explicitá-la, evitando reações negativas de audiências mais conservadoras ou censura internacional.
Artie é um exemplo claro dessa lógica. Ele é afetuoso, seguro de si, subverte normas de gênero, mas sua identidade é reduzida a uma performance estilística, nunca a uma vivência subjetiva. Ele não possui um arco próprio, nem conflitos internos — o que reforça seu papel como personagem de apoio, visualmente chamativo, mas narrativamente raso.
Para alguns, a presença de Artie já é um avanço, especialmente num filme da Disney. Para outros, é mais uma oportunidade desperdiçada de criar personagens queer complexos e reais, com histórias, afetos e subjetividades — e não apenas com figurinos brilhantes.
“Não queremos só ser referência de moda ou atitude. Queremos existir como pessoas completas nas histórias”, diz Rafael M., artista drag e educador. “Artie poderia ter sido um divisor de águas, mas a Disney ainda tem medo de dizer ‘ele é queer’.”
Artie brilha, encanta e desafia normas — mas seu brilho é parcialmente silenciado por um roteiro que opta pela neutralidade. Enquanto a Disney continuar apostando na estética queer sem dar nome às identidades, estará oferecendo uma representatividade pela metade: vistosa, mas vazia de verdade.
O público já está pronto para mais. A questão é: a Disney está?