Em Luca (2021), da Pixar, o público é apresentado à história leve e encantadora de dois garotos-monstros marinhos — Luca e Alberto — que, ao saírem da água, ganham forma humana e escondem sua verdadeira identidade dos humanos da vila costeira de Portorosso, na Itália. O que parece ser, à primeira vista, uma história de amizade infantil e descoberta do mundo, rapidamente despertou outra leitura entre críticos e espectadores: a de uma metáfora queer sobre identidade, aceitação e amor reprimido.
Luca e Alberto vivem sua experiência de forma escondida, com medo da rejeição dos outros. São diferentes e precisam “se disfarçar” para serem aceitos, sob o risco de violência se forem descobertos. A analogia com o “sair do armário” é evidente — e o próprio diretor, Enrico Casarosa, não negou a possibilidade dessa leitura. Mas, como outros títulos da Disney e da Pixar, o filme evita explicitamente tocar em questões de sexualidade, mantendo tudo no campo da sugestão simbólica.
Luca e Alberto vivem juntos, compartilham segredos, têm ciúmes um do outro e constroem um vínculo emocional intenso. A maneira como se olham, como se cuidam e como se separam ao final do filme não apenas emociona — para muitos, remete à dor do primeiro amor queer, muitas vezes não reconhecido e cheio de medo.
Muitos fãs, especialmente da comunidade LGBTQIA+, viram em Luca uma chance rara de ver a infância queer retratada com sensibilidade — não como algo sexualizado, mas como um afeto genuíno entre dois meninos que descobrem o mundo juntos enquanto escondem quem realmente são.
Entretanto, a Pixar optou por não nomear a relação e, mais uma vez, o peso da interpretação ficou a cargo do público.
O simbolismo dos protagonistas como monstros marinhos que precisam se disfarçar de humanos é um recurso narrativo potente. A metáfora serve para diversas leituras: desde imigração até neurodivergência — mas a que mais ressoou foi a queer. O medo de “ser descoberto”, a necessidade de “esconder quem se é” e a libertação que vem da aceitação lembram fortemente a trajetória de pessoas LGBTQIA+ em sociedades conservadoras.
Ainda assim, a Pixar escolheu não explorar essa dimensão de forma explícita. Segundo Casarosa, o foco era mesmo uma “amizade à la Fellini”, inspirada em sua infância. Mas quando tantas pessoas se viram refletidas naquela história, a omissão do estúdio acabou revelando mais do que escondeu: o desconforto ainda persistente das grandes corporações em afirmar personagens queer em suas narrativas principais — especialmente em produtos voltados ao público infantil.
É claro que Luca tem valor — sua delicadeza, seu tom onírico e sua abordagem sensível conquistaram muitos corações. Mas representatividade queer não pode se apoiar eternamente na metáfora. A comunidade LGBTQIA+ — especialmente jovens e crianças — precisa de histórias em que possam se ver de forma clara, direta e afirmada.
“Não queremos só metáforas com escamas e disfarces. Queremos personagens que digam: ‘sou gay, sou queer, e isso faz parte de quem eu sou’”, diz Gabriel Torres, psicólogo e ativista LGBTQIA+ voltado à infância e juventude.
Luca é, sem dúvida, uma história linda sobre amizade, liberdade e descoberta. Mas para muitos, também será lembrado como uma das metáforas queer mais explícitas da Pixar — e uma das mais silenciosamente tratadas. Enquanto os grandes estúdios continuarem nadando em círculos em torno da representatividade, deixarão para o público a tarefa de mergulhar fundo nas entrelinhas — quando o que se deseja é narrativa com coragem à flor da pele.
Porque, afinal, ser diferente nunca deveria ser motivo para se esconder — nem na vida real, nem no cinema.