Trabalhei 14 horas hoje e nem almocei.” A frase, dita em tom de desabafo por uma servidora pública Roberta Justus de Curitiba durante uma viagem a trabalho na cidade de Maringá, pode parecer, à primeira vista, apenas um reflexo de dedicação. Mas, à luz da legislação trabalhista e dos direitos humanos, o que ela revela é um quadro alarmante de sobrecarga, precarização e possível abuso institucional.
Durante uma viagem oficial vinculada ao programa Cuida Paraná, da Secretaria da Justiça e Cidadania (SEJU), veio à tona um relato preocupante: a servidora pública Roberta Justus afirmou trabalhar 14 horas por dia e estar sem acesso à alimentação adequada. O episódio escancara uma realidade pouco visível por trás das ações governamentais que se apresentam como benfeitoras: a precarização do trabalho dentro do próprio Estado.
Enquanto programas sociais são amplamente divulgados pelo governo estadual como demonstrações de cuidado e presença institucional, os bastidores revelam práticas incompatíveis com os direitos básicos dos trabalhadores públicos. Jornadas excessivas, ausência de pausas para alimentação e descanso, além da falta de estrutura durante deslocamentos e ações de campo, compõem um cenário que exige questionamento urgente.
A declaração, feita diante de testemunhas levanta uma pergunta urgente: qual o limite entre dedicação ao trabalho e violação de direitos básicos?
O Código Penal brasileiro define como trabalho análogo ao escravo qualquer relação que envolva jornada exaustiva, condições degradantes, trabalho forçado ou restrição de liberdade. Embora o caso não envolva elementos como cerceamento físico ou retenção de documentos, a sobreposição de jornadas abusivas com negligência em necessidades básicas — como a alimentação — pode indicar um contexto institucional de desrespeito sistemático à dignidade do servidor.
No serviço público, esse tipo de abuso nem sempre é facilmente identificado ou denunciado. Muitas vezes, a dedicação extrema é romantizada como sinônimo de vocação ou comprometimento, quando na verdade pode estar mascarando práticas de gestão abusiva.
Programas como o Cuida Paraná são planejados para atender populações vulneráveis e interiorizar ações do Estado. No entanto, quando a execução dessas políticas se apoia em jornadas excessivas, sem o devido suporte logístico e humano, a lógica do cuidado se inverte: quem cuida é abandonado.
A ausência de alimentação durante o trabalho de campo, somada à falta de controle sobre a carga horária dos servidores, aponta para falhas estruturais na organização dessas ações. O ônus recai sobre os trabalhadores, que arcam com as consequências físicas e emocionais da desorganização institucional.
Ainda que o serviço público tenha regras rígidas sobre jornadas e condições de trabalho, a realidade cotidiana de muitos servidores escapa à formalidade dos editais e portarias. A sobrecarga imposta de forma recorrente — muitas vezes sem compensação, controle de horas ou estrutura mínima — configura uma violação de direitos trabalhistas e humanos.
Esse tipo de prática, quando naturalizado, fragiliza os próprios serviços prestados à população. A precarização do trabalho dentro do Estado afeta diretamente a qualidade do atendimento, a saúde dos trabalhadores e a confiança nas instituições.
Até o momento, a Secretaria da Justiça e Cidadania do Paraná não se manifestou sobre as condições de trabalho de seus servidores em viagens vinculadas ao programa Cuida Paraná. A ausência de resposta institucional reforça a sensação de abandono e invisibilidade vivida por quem sustenta as políticas públicas na linha de frente.
A denúncia não pode ser ignorada. Ela exige investigação por parte de órgãos de controle, como corregedorias, Ministério Público e sindicatos. Mais do que um desabafo isolado, trata-se de um sintoma de um modelo de gestão que, sob o discurso da eficiência, impõe sofrimento e adoecimento a quem deveria ser protegido pelo Estado.
A valorização do serviço público começa pelo respeito às condições de quem o executa. Ignorar isso é compactuar com a precarização institucional.
O caso foi denunciado no Ministério Público do Trabalho (MPT), Controladoria-Geral do Estado (CGE-PR), Ministério Público do Estado do Paraná (MPPR) e Sindicato dos Servidores Públicos.