Mais do que um espetáculo teatral, “Daqui Ninguém Sai” é uma declaração de princípios. Em tempos nos quais a diversidade ainda é frequentemente tratada como exceção, a nova montagem do Teatro de Comédia do Paraná (TCP) coloca em prática algo que o setor cultural brasileiro há muito discute, mas raramente concretiza: a verdadeira inclusão.
A peça não só garante acessibilidade para o público surdo com intérpretes de Libras em todas as apresentações, como também conta com uma atriz surda no elenco, Paula Cristina Roque, com mais de dez anos de trajetória nas artes cênicas. Sua presença em cena, assim como a forma como o texto foi adaptado e vivido por ela — em Libras, com expressividade facial e corporal — aponta para uma mudança estrutural e urgente no modo como pensamos o teatro: não apenas como espetáculo, mas como espaço de pertencimento.
“Quando a tradução e a inclusão deixam de ser apêndices e passam a fazer parte da linguagem artística, o que se vê no palco é outra coisa: é potência”, afirma um dos espectadores, surdo, que acompanhou a estreia da temporada. A atuação de intérpretes especializadas como Elisa Maganhoto e Talita Grünhagen, integradas de forma orgânica à encenação, comprova isso.
O processo seletivo para o elenco adotou critérios diferenciados, priorizando mulheres, pessoas negras, comunidades tradicionais, LGBTQIAP+, pessoas com deficiência e pessoas idosas. O resultado é um elenco que reflete a complexidade da sociedade brasileira, rompendo com o padrão homogêneo ainda predominante nos palcos do país.
Mais do que apenas ocupar espaços, esses corpos diversos reescrevem o que se entende como “universal” no teatro. Não há neutralidade quando se escolhe quem conta a história — e “Daqui Ninguém Sai” assume com clareza o compromisso de contar com outras vozes, outras experiências, outros modos de ver o mundo.
Há anos fala-se sobre a necessidade de tornar o teatro mais acessível, mas poucos espetáculos vão além da intenção. “Daqui Ninguém Sai” é um caso raro em que a inclusão não é apenas um recurso técnico (como a presença de intérpretes), mas uma escolha estética e política.
É fundamental destacar que a presença de pessoas com deficiência não deve ser apenas no público, mas também na criação. Ter uma atriz surda em cena, com protagonismo e liberdade criativa, é um marco. Paula Cristina Roque não foi apenas incluída — ela transformou o texto, reinterpretou linguagens e ampliou os sentidos da obra.
Essa abordagem reflete o que há de mais avançado em termos de arte e inclusão: não se trata de adaptar a realidade da pessoa com deficiência à cena, mas de adaptar a cena a uma realidade mais plural.
Outro ponto relevante da montagem é o acesso gratuito. Em um país onde grande parte da população ainda está à margem dos espaços culturais por barreiras econômicas, oferecer entrada livre é um ato de democratização.
Quando esse acesso gratuito vem aliado à inclusão de públicos historicamente excluídos — como o público surdo —, temos um exemplo concreto de como a cultura pode ser ferramenta de transformação social.
Com dramaturgia de Henrique Fontes e equipe técnica de excelência, o espetáculo celebra o centenário do autor Dalton Trevisan com respeito à sua obra e, ao mesmo tempo, com uma ousadia estética que honra a tradição inovadora do TCP.
“Dalton era discreto, mas amava ver suas histórias no palco. E essa peça talvez seja uma das mais completas homenagens que sua obra já recebeu: humana, atual e coletiva”, comentou a atriz Nena Inoue, relembrando a relação afetiva entre o autor e o Teatro Guaíra.
“Daqui Ninguém Sai” mostra que a inclusão, quando real e bem planejada, não empobrece a arte — enriquece. Amplia repertórios, desafia formas, expande horizontes.
Que essa montagem sirva de exemplo e inspiração para outras iniciativas culturais. A acessibilidade não pode mais ser tratada como diferencial, mas como parte fundamental de uma arte que verdadeiramente quer dialogar com todos.
Serviço:
"Daqui Ninguém Sai"
23 de maio a 15 de junho, sempre às sextas-feiras e sábados, às 20h30, e domingos, às 18 horas
Local: Auditório Salvador de Ferrante (Guairinha) - a entrada do público será pela pela Rua Amintas de Barros. Pessoas com deficiência motora ou dificuldade de locomoção podem entrar pelo saguão do Guairinha.
Classificação: 16 anos
Duração: 100 minutos
Ingressos à venda por R$20 (inteira) e R$10 (meia-entrada), na bilheteria do Centro Cultural Teatro Guaíra e no site DiskIngressos
Acessibilidade: o espetáculo conta com intérprete de libras.