Em meio ao crescimento da busca por alternativas à reprodução assistida no Brasil, um fenômeno silencioso e preocupante se espalha pela internet: grupos informais em redes sociais — especialmente no Facebook e no WhatsApp — vêm promovendo a doação caseira de esperma com métodos inseguros e não regulamentados.
A promessa de uma gravidez acessível, sem custos de clínica ou burocracia, atrai milhares de casais heterossexuais e homoafetivos. Mas o que parece uma solução simples esconde práticas médicas ilegais, riscos à saúde pública e uma completa ausência de fiscalização digital.
Investigando esses grupos, é possível encontrar:
“Aulas” informais de inseminação caseira, com seringas, potes plásticos e medicamentos sem prescrição.
Grupos de WhatsApp com troca de vídeos, orientações não médicas e incentivo à automedicação.
Pessoas que se colocam como “mentoras” de tentantes, oferecendo conselhos sobre ciclos, ovulação e até como usar remédios como indutores de ovulação — tudo sem formação técnica.
Homens que se oferecem como “doadores”, mas exigem sexo como método de doação, burlando consentimento e ética médica.
De acordo com a legislação brasileira, a prática de ato médico por quem não tem formação ou habilitação é crime (Art. 282 do Código Penal). Além disso, a prescrição, venda ou sugestão de uso de medicamentos sem autorização pode configurar infrações à lei sanitária.
A divulgação ou incentivo a essas práticas também pode configurar crime, especialmente se resultar em lesões, aborto ou infecção.
Além disso, a inseminação artificial — mesmo caseira — está regulada por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Anvisa. Fora desses parâmetros, qualquer ação pode ser considerada procedimento clandestino de saúde, passível de penalidades civis e administrativas.
Sim. Mesmo sem executar o procedimento, quem divulga, ensina, orienta ou incentiva práticas médicas ilegais pode ser responsabilizado penalmente e civilmente. Isso vale para administradores de grupos, influenciadores ou qualquer pessoa que ofereça “ajuda” não autorizada.
A responsabilidade pode ser ainda maior se houver resultado prejudicial, como infecções, aborto espontâneo por automedicação ou transmissão de doenças.
As plataformas da Meta — Facebook e WhatsApp — operam sob o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que determina que provedores de rede não são automaticamente responsáveis pelo conteúdo de terceiros. Mas essa proteção tem um limite: ao serem formalmente notificados de condutas ilegais e não tomarem providências, podem responder por omissão.
O problema é que, na prática, a moderação é ineficaz ou inexistente. Grupos com centenas de membros continuam ativos mesmo após denúncias, e o conteúdo é replicado em links de grupos externos no WhatsApp, Telegram e outras plataformas — tornando quase impossível qualquer rastreamento eficaz.
O Marco Civil foi criado para garantir liberdade de expressão, neutralidade da rede e privacidade. Mas, hoje, enfrenta uma realidade que não previa: o uso contínuo da internet para práticas potencialmente criminosas, mascaradas de “ajuda comunitária” ou “solidariedade”.
Sem revisão, o Marco Civil tem sido usado como escudo por grandes plataformas, enquanto milhares de brasileiros se expõem a práticas médicas ilegais, desinformação e riscos físicos, emocionais e jurídicos profundos.
O Ministério Público pode abrir investigações sobre grupos que divulgam práticas médicas ilegais.
A Anvisa e o CFM devem ser acionados para emitir alertas públicos e fiscalizar denúncias.
Usuários conscientes podem denunciar perfis e grupos diretamente nas plataformas e aos canais do MP ou Polícia Civil.
O Congresso Nacional pode discutir atualizações no Marco Civil e na responsabilização de plataformas.
A internet pode ser um espaço de apoio e informação — mas também se tornou terreno fértil para práticas perigosas quando não há regulação ou responsabilidade. Ensinar práticas médicas sem qualificação, incentivar inseminações inseguras e expor pessoas a riscos de saúde é mais do que um problema ético: é um problema de saúde pública, de direito e de responsabilidade digital.