O que acontece quando um cidadão, vítima de múltiplas violências desde a infância, procura o sistema público de saúde mental esperando acolhimento e recebe, em troca, desprezo, omissão e práticas que beiram a crueldade institucional? O caso de um ex-usuário do CAPS II – Canção, em Maringá (PR), é um retrato sombrio da medicalização forçada, do silenciamento da dor e da perpetuação de estruturas de poder dentro de um sistema que deveria cuidar.
Em notificação extrajudicial enviada no início de julho de 2025, foram formalizadas uma série de denúncias contra o CAPS II, citando violações éticas, omissões legais e práticas clínicas questionáveis por parte da equipe médica. A resposta da prefeitura foi evasiva, genérica e, em diversos trechos, completamente alheia à gravidade dos relatos.
O denunciante, ex-usuário do CAPS II, relata que, a partir dos 14 anos, passou a ser forçado pelos próprios pais a ingerir medicamentos psiquiátricos prescritos por um médico que raramente o via. As receitas eram emitidas sem qualquer consulta regular, com dosagens elevadas e diagnósticos questionáveis. Segundo ele, o profissional em questão é conhecido entre colegas da área por excesso de medicalização e ausência de escuta clínica real.
A situação se manteve por anos. Quando finalmente buscou atendimento no CAPS – já adulto, após crises de pânico –, ele esperava uma reavaliação cuidadosa. Em vez disso, as condutas anteriores foram mantidas, sem análise aprofundada do histórico familiar ou social.
Durante as consultas no CAPS II – Canção, ao questionar a validade do diagnóstico de transtorno bipolar que o acompanhava desde a adolescência, ele ouviu de uma psiquiatra que “saber o diagnóstico não era relevante”, contrariando o direito básico à informação garantido pela Lei nº 8.080/1990.
Mais grave: a hipótese clínica de burnout como causa das crises foi ignorada, mesmo com o relato de uma rotina absolutamente insustentável. Na época da crise, conciliava dois empregos com carteira assinada, trabalhos como autônomo e freelancer aos fins de semana, além da produção de material didático para uma universidade. Tudo isso em meio a denúncias de assédio, boicote, e presença em ambientes de trabalho onde crimes eram cometidos — incluindo manipulação de alimentos com risco à saúde pública e falsificação de documentos.
A crise não foi tratada como consequência de um colapso humano, mas como mais um item a ser medicado — sem escuta, sem análise contextual, sem humanidade.
Ao tentar apresentar estudos e análises feitas a partir de fontes acadêmicas encontradas online, o denunciante, ex-usuário do CAPS II, foi desqualificado. A médica disse, de forma irônica e incisiva, que "ele havia tirado aquilo do Google" e que isso não era confiável.
A fala deslegitima não apenas o paciente, mas todo o direito de acesso à informação, que é constitucional, além de desconsiderar o óbvio: o Google é um mecanismo de busca, não uma fonte. O que importa é a origem e o critério da informação, algo que o paciente, com formação acadêmica e pós-graduação, demonstrava ter.
Essa tentativa de inferiorização intelectual revela uma cultura de supremacia médica, onde o saber do paciente é ameaçador — e, portanto, deve ser calado.
Durante o tratamento, relatou ter sido vítima de pedofilia e prostituição juvenil ainda na infância, episódios que manteve em segredo por mais de 20 anos. Relatou também que, ao tentar denunciar e estudar o tema em grupo de pesquisa universitário, foi coagido a se calar.
Além disso, relatou homofobia, racismo, gordofobia, ameaças de morte e assédio moral no ambiente de trabalho. Nenhuma das denúncias gerou qualquer tipo de encaminhamento, notificação ou orientação legal.
É dever ético e institucional de unidades como o CAPS encaminhar casos de violência à rede de proteção, conforme o Protocolo Nacional de Notificação de Violências. A omissão diante de tantos relatos configura falha grave de responsabilidade social e clínica.
Em outro episódio inaceitável, o CAPS enviou confirmação de consulta à genitora de Michel, com quem ele já não mantinha contato devido à relação abusiva. A prática viola diretamente a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), que protege não apenas dados documentais, mas qualquer tipo de informação sensível sobre um cidadão.
Mesmo com a manifestação expressa do paciente de que sua mãe não deveria ser contatada, a unidade ignorou sua autonomia e feriu seu direito à privacidade.
Segundo o ex-atendido do CAPS II, a médica que o atendeu demonstrava frieza constante, ausência de empatia e postura apática. Houve momentos de grosseria explícita, e nenhuma tentativa da unidade de avaliar a qualidade do vínculo terapêutico ou reavaliar a equipe de referência, como prevê o Projeto Terapêutico Singular (PTS).
A resposta oficial da Secretaria Municipal de Saúde e do CAPS II – Canção foi protocolar, evasiva e tecnocrática. Embora citem diretrizes do SUS, protocolos éticos e direitos do paciente, em nenhum momento reconhecem os abusos cometidos, nem se posicionam diante das denúncias concretas.
A fala ofensiva sobre o Google não é sequer mencionada. Os crimes relatados são ignorados. A resposta é um retrato fiel da omissão institucional travestida de formalidade.
Diante da negligência sistemática e da tentativa de apagar sua história, denúncias formais serão feitas aos seguintes órgãos:
Ministério Público do Paraná (MPPR) – Especialmente nas Promotorias de Saúde e de Direitos Humanos, para apurar possíveis crimes de negligência institucional, violação de direitos fundamentais e omissão diante de relatos de violência (como pedofilia, racismo, ameaças e homofobia).
Defensoria Pública do Estado do Paraná – Para garantir acompanhamento jurídico na proteção de seus direitos, frente às falhas do poder público e à revitimização sofrida no atendimento. A Defensoria é responsável por assegurar acesso à justiça especialmente em casos de vulnerabilidade social e negligência do Estado.
Ouvidoria do SUS (local e federal) – Para registrar formalmente a má conduta do CAPS II – Canção e falhas graves na condução do cuidado em saúde mental, como a ausência de acolhimento, a não escuta qualificada e a imposição medicamentosa sem embasamento atualizado.
Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) – Para que sejam apuradas as condutas antiéticas da psiquiatra responsável, como a deslegitimação do paciente, a manutenção de medicação sem análise do histórico, e o uso de falas autoritárias e desrespeitosas.
Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) – Caso tenha havido participação de psicólogos na equipe, será questionada a omissão diante dos relatos de violência e negligência institucional, o que fere diretamente o Código de Ética da Psicologia, que prevê atuação em defesa dos direitos humanos.
Conselho Municipal de Saúde de Maringá – Para que o caso seja incluído no debate público da política de saúde mental da cidade, e o controle social possa fiscalizar e propor medidas diante das falhas recorrentes no CAPS II – Canção.
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – Por quebra da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ao compartilhar dados sensíveis com terceiros (como o envio de confirmação de consulta à genitora do paciente, contra sua vontade), violando o direito à privacidade e à autonomia do usuário.
O denunciante do CAPSII não é exceção. É o retrato de uma multidão de brasileiros que buscam ajuda no SUS e recebem desprezo, pressa, julgamento e medicalização como resposta. Sua coragem em denunciar, em tornar público, e em transformar sua dor em luta, revela o que há de mais revolucionário em tempos de silenciamento: a palavra consciente.
Em suas palavras, ditas em notificação:
“Depois de todos os crimes que sofri, luto contra a desinformação. Essas informações se tornarão públicas por meio de reportagens e artigos para que a sociedade conheça a verdade.”
A saúde mental pública no Brasil precisa urgentemente de mais do que protocolos, fichas de acolhimento ou consultas apressadas com psiquiatras que se escondem atrás de prontuários. Ela precisa de humanidade, escuta ativa, respeito ao saber do paciente e abertura ao contraditório.
A dor psíquica não pode ser tratada como algo meramente químico, muito menos como um problema que deve ser calado com pílulas e frases de autoridade clínica. Nem todo paciente psiquiátrico é irracional. Na verdade, muitos adoecem justamente por ver demais, sentir demais, resistir demais.
Como bem expressa a reflexão inspirada nos escritos do psiquiatra Frantz Fanon:
“Nem todo paciente psiquiátrico é irracional: muitas vezes, é justamente sua lucidez, sensibilidade e inteligência que o conduzem ao colapso. Não o desabona, o revela.” — Inspirado em Pele Negra, Máscaras Brancas (2008).
O caso é um alerta de que, quando o sistema de saúde pública abandona o cuidado integral e falha em proteger os mais vulneráveis, ele não apenas deixa de tratar — ele passa a adoecer. E esse tipo de adoecimento não se cura com remédios, mas com responsabilidade, reparação e justiça.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
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