Domingo, 27 de Abril de 2025
Publicidade

O filho de Deus

Texto produzido no âmbito da disciplina de Jornalismo Literário do curso de Jornalismo da Faculdade Maringá, em 2019, pelo então aluno Michel Hajime

29/03/2025 às 20h14
Por: Rede Geração
Compartilhe:
Foto: Michel Hajime
Foto: Michel Hajime

Um lugar distante, mas dentro da civilização. A referência dada foi o maior shopping de Maringá. Quase em frente, em uma rua escura, mal asfaltada e sem saída, apenas uma placa dizia: Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória. Era o que estava escrito que tranquilizava a sensação ruim que surgia pela aparência de abandono, pois, apenas assim, dava para saber que era um caminho que levava a Deus.

Após andar por um tempo de carro, chegamos ao seminário. Um lugar grande, iluminado apenas pelas luzes que saíam das janelas e pelas outras que iluminavam as imagens de santos espalhadas pelo local. Todo o recinto era cuidado por dois cachorros, o cão que antes, junto do pastor, cuidava das ovelhas. Agora, ali, o ser de quatro patas cuidava dos pastores da chegada de uma possível ovelha desgarrada.

Bem na nossa frente, um cálice enorme e uma grande eucaristia em cima. Era ali, uma caixa d'água desativada há muito tempo. Com certeza, um monumento para mostrar que ali é um lugar de comunhão com o divino Pai Eterno.

Passamos então pelo primeiro setor, seguindo as placas que nos levaram até um terceiro mais abaixo. Ao percebermos que não era ali, voltamos ao primeiro, paramos na porta e desci do carro. Fui até a entrada, e do andar de cima veio um jovem rapaz. Era o seminarista Antônio Vicente de Almeida Júnior, de 26 anos. Ele desceu, nos apresentamos e fomos para uma sala logo na entrada, ao lado esquerdo.

Na sala, bem na entrada, havia uma mesa com uma toalha branca, bem típica de igreja. Me sentei de costas para a janela e ele de frente para mim. Eu tinha uma ampla visão da sala. Logo atrás de Júnior, uma pintura de Jesus em prece. Mais ao lado esquerdo, vários sofás e uma cruz enorme ao fundo. Do meu lado direito, outra pintura que me intrigou, e durante nossa conversa, olhei para ela várias vezes, tentando reconhecer o que seria a gravura, mas não perguntei.

Um seminarista jovem, com uma fala doce, um jeito meigo e uma atitude acolhedora. Usava uma roupa simples. Dentre elas, uma camiseta com as iniciais “JDM”, que significava Jovens de Maria, um grupo que ele acompanhou em 2018 no trabalho pastoral de pós-crisma da igreja Nossa Senhora Aparecida.

Quando sentamos para conversar, não pude deixar de reparar em seu nervosismo, embora sua tranquilidade maquiava a sensação de tensão por estar diante de um jornalista pronto para bombardeá-lo com perguntas. Minha primeira indagação foi sobre o fato de eu achar que eles moravam ali. Quando procurei o padre responsável e falei sobre a proposta de entrevista, disse que minha intenção era passar um final de semana com eles. A resposta foi direta: “Impossível”, e argumentou dizendo que os jovens vão para a casa nos finais de semana. Mas não disse que, sim, eles moram lá. Creio que ele não quis admitir a presença de um estranho nos alojamentos. Disse apenas que eu poderia acompanhar uma das atividades. Mas só pude entender tudo isso com a explicação de Júnior, que começou dizendo: “Nós moramos aqui, essa é a nossa casa!”

Ele conta que, durante a semana, vivem no seminário, com uma rotina de trabalhos, estudos e outras atividades pontuais, conforme cada participante achar melhor. E que, aos finais de semana, fazem trabalhos pastorais e vão para uma comunidade paroquial, ou trabalhos a nível de diocese. No segundo ano, no caso de Júnior, fazem um trabalho específico de discipulado ou filosofia, com tarefas pré-definidas, segundo o seminarista. Isso contradiz a fala do padre responsável, já que ele não dorme no seminário, mas também não vai para a casa da família. Se não quisesse que um jornalista passasse a noite lá, bastaria ter falado.

Quando comecei a entrevista, já deixei claro a Júnior que, se não quisesse falar algo, era só não responder. Disse que gostaria de saber como era a vida deles. Então, ele me contou que cada seminário tem suas regras. Ali, as refeições são feitas em determinados horários, cada uma em um local diferente. Lá, eles não lavam suas roupas, mas são responsáveis pela louça. Na cozinha, a organização era impecável; na sala onde tomam café da manhã, a mesa já estava posta para o dia seguinte, tudo muito bem posicionado. Xícaras em cima dos pires, talheres um ao lado do outro e guardanapos colocados como em um café colonial.

Quanto às roupas, ele me contou ainda que as funcionárias lavam tudo, mas que, no primeiro seminário onde passou, eram eles que lavavam. Por isso, nesse, ele faz questão de lavar pelo menos suas roupas íntimas, mas a maioria não lava sequer a própria cueca.

Os outros afazeres são divididos em duas tardes para a limpeza da casa, onde também são separados em dois grupos: um para limpar dentro e o outro, do lado de fora. Um deles cuida do financeiro e outro da biblioteca, sendo responsável por cuidar, limpar e catalogar as obras. Todas as funções são revezadas entre eles a cada seis meses.

Uma vida para quem quer virar padre, afirmei. Logo ele me rebateu dizendo que lá eles não dizem assim, principalmente para quem está apenas na metade, no segundo ano. “Ser padre é um objetivo a longo prazo.” Ele conta que o seminário é para ter um discernimento mais inserido nessa realidade, a partir do que a igreja propõe para eles. E, por incrível que pareça, ele contou que, ao final desse processo, a igreja pode não querer o estudante que passou quatro anos no seminário, assim como o seminarista pode desistir e optar pela busca de chegar ao céu de forma solitária ou sem ser um retransmissor da palavra divina.

Mas como ele fora parar ali? Essa era a minha grande dúvida ao olhar para aquele rapaz que poderia ser o que quisesse na vida. Bom, ele quis estar ali, restava-me saber o porquê. Foi aí que ele contou que queria ser designer, mas seus pais não o deixaram ir para Cianorte, onde ficava o curso da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Então, ele teria que escolher outra coisa. Por coincidência, naquele ano, abriu o curso de Artes Visuais na UEM, e ele passou no vestibular, começando o primeiro ano do curso. Mas foi quando tudo começou a mudar. “Lá existiam muitas posturas distintas uma das outras, e eu, no meio daquela diversidade toda, a única identidade que eu poderia dizer que eu era: Cristão católico.” Foi aí que, então, nosso jovem resolveu pensar na carreira religiosa. “Foi ali que eu comecei a me questionar, o que seria ser cristão, se eu era realmente cristão.” Para ele, mais do que o arcebispo ter lhe dado a crisma, foi a UEM onde ele realmente confirmou sua fé.

Foi na universidade onde Júnior teve sua terceira experiência de namoro com uma garota de outra religião, de uma igreja protestante. Ficaram juntos por um tempo, numa caminhada conjunta, mas decidiram dar “um tempo”, e para ele foi uma das experiências mais importantes que teve até o presente momento. A partir daí, ele começou a pensar mais amplamente e filosofar sobre a vida, com os questionamentos mais famosos da filosofia: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? O que, de fato, nem Aristóteles, nem Platão, nem qualquer filósofo conseguiu responder. Até hoje, essas três perguntas básicas só podem ser respondidas pela fé. Mesmo assim, ele se formou, deu aula em escola pública de ensino infantil por um ano, mas decidiu que queria seguir a carreira religiosa.

Carreira à qual ficava imaginando como seria a aceitação da família. Júnior contou que morava com o pai, a mãe e a irmã, que se casou em 2013 e foi morar em outra cidade. Ficando apenas ele e os pais, que sempre o apoiaram e praticamente fizeram o discernimento juntos. “Sempre foi uma coisa clara, bem dialogada entre nós.” Os pais sempre foram católicos, talvez nem tão intensos na igreja, mas sempre caminharam na fé. Mas sempre a mesma cena clássica de cinema: quando o filho sai de casa, a mãe chora um pouco, o pai fica meio inseguro, mas nada de impedimento e nem excesso de estímulo.

Levantamos e fomos conhecer as instalações do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória. Saindo da sala em que estávamos, fomos para a sala de televisão. Algo que, de cara, surpreende. Padre assiste TV? Sim, afirma ele, nós podemos assistir quando quisermos, desde que todas as tarefas de rotina e as delegadas estejam cumpridas. Ainda não acreditando, pergunto, mas podem ver qualquer canal? “Sim, sem restrições.”

Saindo da sala de televisão, passamos direto pela primeira cozinha. Tudo muito limpo e organizado, uma organização quase divina. Ali, também, uma enorme máquina de fazer pão. Afinal, o pão é a comida mais sagrada na igreja. O pão que é o corpo de Cristo, o pão que é o alimento do homem.

Ao lado, outra cozinha. Júnior me explica que a primeira, de onde acabamos de sair, é onde eles tomam o café da manhã, e a que estávamos, é para os almoços. Uma terceira cozinha, mais ao fundo, que não cheguei a conhecer, é para o jantar.

Durante nosso tour pela "escola de Deus", passamos por várias salas vazias. Afinal, um lugar tão grande que não teria o que fazer com tanto espaço. Isso porque, dos três setores que vimos ao chegar, eu só conheci o primeiro.

Chegamos então à lavanderia. Máquinas de lavar industriais. Roupas penduradas num varal que ia de um canto a outro da sala. O calor era tão grande que as roupas ali nem precisavam de secadora. Elas secam com calor e fé.

Passamos por outra sala, onde havia um rapaz escrevendo em um caderno surrado. Ele nos cumprimentou e voltou a escrever. Ali, o único ventilador que vi durante todo o percurso, então perguntei: “Quente aqui, e esse é o único ventilador que vejo, também não vi nenhum ar condicionado.” Júnior tranquilamente responde: “Não tem ar, e ventiladores são muito poucos. Aqui é bem quente.” Talvez seja para eles terem uma noção de como é o inferno e realmente desejar ir para o céu.

Dali, pegamos um corredor. No final, uma escada em espiral. Do andar de baixo, vinha uma luz muito forte. Descemos por ela. Quase bati a cabeça em uma viga. Algo muito desajeitado. Ao fim da escada, um altar. Ali reinava o silêncio, que mais parecia uma prece. Ao sairmos, passamos por uma sala com um armário cheio de hóstias. Parecia um grande cofre de pão celestial.

Ao sairmos desse ambiente extremamente iluminado e com paredes com pinturas de cores vivas, entramos em uma sala escura. Ele foi à frente e ligou os interruptores. A cada luz que se acendia, dava para ver os objetos. Ao final, com todas as luzes acesas, percebi que ali era a sala de música. Um grande órgão, um teclado, entre outros. Perguntei se ele tocava, ele disse que apenas sabia violão. Foi em direção a um violão, que até então eu não o tinha visto dentro do mar de instrumentos do local. Ele se sentou e brincou de tirar som. Olhou para mim e deu um sorriso tímido, dizendo em seu semblante: “Sei tocar, mas estou com vergonha.”

Continuamos a andar e fomos até os dormitórios. Um lugar abafado, com duas camas de solteiro que pareciam não ter colchão de tão finos que eram. Um cheiro de abandono, talvez pela estrutura antiga do prédio. Perto da porta, um banheiro, mas ele conta que nem todos os seminários têm banheiros privados, alguns são coletivos. Um lugar não tão confortável, bem distante do paraíso. Júnior calmamente me diz: “Tudo tem um porquê. Se a gente não se acostuma minimamente com essas adversidades, talvez não consiga dar conta de um ministério.”

Na volta, passamos por mais uma capela, um corredor que ligava todos os outros. Nele, uma cruz bem no meio com um pano vermelho por cima dela. Reparei que, nesse passeio, ele não me levou para a biblioteca. Talvez porque, assim como na Idade Média, ainda haja algumas escrituras secretas que um simples servo de Deus não poderia saber. Ainda mais quando este servo é quase uma ovelha Pandora.

Então, voltamos à sala onde fizemos nosso bate-papo. Peguei minhas coisas, mas, dessa vez, como jornalista, não me aguentei e perguntei que quadro era aquele ao lado direito da mesa. Disse a ele que tentei entender a obra, mas não consegui identificá-la. Ele me disse que não lembrava quem era o pintor, mas que aquela era a reprodução da parábola do filho pródigo. Então, ele passou a mão na tela e, com um toque suave, foi me mostrando e explicando. “Repare os pés descalços, remete à falta de dignidade.” Então vi o pé do rapaz todo sujo, ao se ajoelhar em frente ao pai e ao olhar do filho mais velho indignado. “Repare que uma mão é mais feminina e a outra mais masculina, o que mostra a maternidade e a paternidade, que só um pai, assim como Deus, é capaz de ter.” Fiquei então olhando e, por um breve momento, algo me remeteu à minha infância, pela primeira vez que ouvi essa história. Quando me voltei para ele, só disse que gostaria de saber quem era o autor.

Júnior me levou até a porta, se despediu com um forte aperto de mão. Agradeci e pedi desculpas por algo que, sem querer, poderia ter cometido. Então, fui até o carro, onde meu pai me esperava. Ao sair, só o vi fechando a porta.

Assim que cheguei em minha casa e meu celular conectou ao Wi-Fi, meu WhatsApp tocou com uma mensagem de Júnior que dizia: “O Retorno do Filho Pródigo - Rembrandt, Museu Hermitage.” Seguido de: “Grande abraço. Bom trabalho!!! Paz!”

* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.
500 caracteres restantes.
Comentar
Mostrar mais comentários
Publicidade
Economia
Dólar
R$ 5,69 -0,04%
Euro
R$ 6,47 +0,00%
Peso Argentino
R$ 0,00 +0,00%
Bitcoin
R$ 565,648,31 -1,01%
Ibovespa
134,739,28 pts 0.12%